Praticamente metade do orçamento federal vai para o pagamento da dívida. Esse é o motivo da falta de recursos para investimentos no Brasil. Acontece que essa dívida é em grande parte irregular e não deveríamos estar pagando.
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Maria Lucia Fattorelli coordena o movimento Auditoria Cidadã da Dívida | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Samir Oliveira
Auditora da Receita Federal durante 29 anos, Maria Lucia Fattorelli
se dedica, desde 2001, à coordenação do movimento Auditoria Cidadã da
Dívida. A organização vem buscando informações sobre a dívida pública
brasileira e demanda a realização de uma ampla auditoria em seus
contratos.
Para Maria Lucia, existe um “sistema da dívida” no Brasil. Nesta entrevista ao
Sul21,
ela explica que esse sistema foi orquestrado pelo aparato financeiro
internacional com a anuência de diversos governos desde a ditadura
militar.
“O sistema consiste na usurpação do instrumento de endividamento
público. Em vez de ser um instrumento que aporta recursos ao Estado,
passou a ser um ralo para escoar esses recursos. É esse sistema que
influencia o modelo econômico. Quais são as metas econômicas do governo
federal? Não são metas de bem estar social. São metas de controlar a
inflação e atingir o superávit primário. Se não há recurso para pagar a
dívida e atingir o superávit, então o governo corta o orçamento de
diversas áreas”, critica.
A auditora aposentada foi uma das seis estrangeiras escolhidas pelo
presidente do Equador, Rafael Correa, para realizar uma auditoria da
dívida pública do país, em 2007. Com essa atitude, o Equador reduziu em
70% o gasto com a dívida. “Foi uma lição de soberania ao mundo”, defende
Maria Lucia.
Ela esteve em Porto Alegre nesta semana para participar do XXII
Congresso da Federação Nacional das Entidades dos Servidores dos
Tribunais de Contas do Brasil (FENASTC).
“A dívida brasileira hoje, somando a externa e a interna, está em
quase R$ 3,5 trilhões e absorve quase meio orçamento por ano. Em 2011, o
governo pagou R$ 708 bilhões”
Sul21 – Como surgiu o movimento?
Maria Lucia Fattorelli - O movimento existe desde 2000,
quando houve o grande plebiscito popular da dívida no Brasil. Esse
plebiscito foi convocado por entidades da sociedade civil, igrejas,
partidos políticos, sindicatos e associações. Foi realizado em mais de
3,3 mil municípios em todo o país e colheu mais de 6 milhões de votos.
Em toda a década de 90, vínhamos debatendo esse assunto. Se o Brasil é
tão rico, por que temos tantos problemas sociais? Chegamos à conclusão
de que a mãe das dívidas sociais era a dívida externa. Na época, a face
da dívida era a externa. O plebiscito que organizamos tinha três
perguntas e uma delas era: “Você concorda em continuar pagando a dívida
sem a realização da auditoria prevista na Constituição?”. A Constituição
de 1988, no artigo 26 das disposições transitórias, prevê a realização
de uma ampla auditoria por uma comissão mista convocada pelo Congresso
Nacional. Terminado o plebiscito, entregamos os resultados para o
Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Passaram-se meses e não
aconteceu absolutamente nada, então as entidades voltaram a se reunir
para discutir o que fazer. Mais de 80 entidades nacionais e alguns
parlamentares propuseram a continuidade da luta iniciada com o
plebiscito através de um movimento pela auditoria cidadã.
“Qual tem sido o peso da dívida na vida do cidadão?”, questiona a auditora | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Sul21 – Qual o objetivo do movimento?
Maria Lucia – Não queríamos ficar apenas cobrando a
auditoria da dívida. Iríamos além. Iríamos tentar levantar o que fosse
possível, com base em dados e documentos públicos. É o que temos feito
ao longo desses 12 anos, acessando dados sobre a dívida pública da
União, dos municípios e dos estados, sempre analisando o teor dos
contratos e a sua conjuntura. Buscamos fazer uma auditoria integral, que
não é simplesmente uma auditoria contábil. Comparamos dados divulgados
pelo Ministério da Fazenda com os dados da contabilidade nacional, com a
evolução do orçamento e com o peso da dívida no orçamento. Qual tem
sido o peso da dívida na vida do cidadão? Com isso, conseguimos explicar
porque o Brasil, sendo um dos países mais ricos do mundo, acumula tanta
injustiça, tanta miséria e não oferece os serviços públicos aos quais a
sociedade tem direito. Os recursos necessários para isso estão sendo
sangrados pela dívida.
Sul21 – Quem são os profissionais que trabalham nessa auditoria?
Maria Lucia - É um movimento aberto. Tem mais de 50
entidades apoiadoras. E 99,9% dos que trabalham conosco são voluntários.
Contamos principalmente com o trabalho voluntário de auditores da
receita federal, dos tribunais de contas e das receitas estaduais, que
doam seus conhecimentos para esta luta cidadã.
Sul21 – E que tipo de informações vocês já possuem sobre a dívida?
Maria Lucia - A dívida brasileira hoje, somando a
externa e a interna, está em quase R$ 3,5 trilhões e absorve quase meio
orçamento por ano. Ainda assim, a dívida continua aumentando. Em 2011, o
governo pagou R$ 708 bilhões. Até início de outubro de 2012, já
tínhamos atingido essa cifra. Em geral, o governo divulga uma cifra
muito mais baixa do que essa, como se a dívida estivesse em torno de R$
1,8 trilhão. Isso porque ele divulga a dívida líquida. É um conceito
muito pouco claro em que se deduz alguns créditos da dívida bruta. O
governo utiliza na dedução, por exemplo, o volume de reservas
internacionais. Mas elas representam um ingresso quase nulo ao Brasil.
Não dá para fazer esse encontro de contas. As reservas não estão
disponíveis, se estivessem, poderíamos simplesmente reaver esse recurso e
quitar uma parte da dívida, e isso não está sendo feito. A dívida que
estamos pagando é bruta, é sobre ela que incidem os juros. Temos que
tomar cuidado com essas maquiagens e conceitos que não são claros.
“Já não faz mais sentido falarmos, hoje, em dívida interna e
externa. Precisamos falar em dívida pública ou dívida soberana, por
conta da ausência de barreiras ao capital”
Sul21 – Afinal, o que compõe essa dívida?
Maria Lucia - Nosso endividamento nasceu junto com a
“independência”. Para o que o mundo financeiro reconhecesse nossa
independência, herdamos uma dívida que Portugal havia contraído com a
Inglaterra para brigar contra a nossa independência. O valor era 3,1
milhões de libras esterlinas – na época, muito dinheiro. Em 1931, quando
Getúlio Vargas assumiu, ele questionou o fato de haver tantas cobranças
sem os respectivos contratos. Ele determinou que houvesse uma
auditoria. O resultado foi impressionante: apenas 40% da dívida estava
documentada. Não existia controle dos pagamentos, nem das remessas ao
exterior. Isso permitiu o início de uma revisão e certamente ajudou na
implantação dos direitos sociais garantidos naquele período. O período
atual iniciou na década de 1970, quando a dívida externa era de US$ 5
bilhões. Durante essa década, esse valor se multiplicou por dez. Era
algo totalmente sem transparência, e o que se dizia era que o
crescimento da dívida ocorreu para financiar o “milagre econômico”. Em
2010, durante a CPI da Dívida, pedimos os contratos referentes à década
de 1970. Apenas 16% da dívida estava explicada em contratos. Há uma
grande suspeita de que boa parte desses 84% restantes tenha sido
recursos que vieram justamente para financiar a ditadura. Imaginávamos
que a maior parte dessa dívida era com o FMI. Mas, durante a CPI,
fizemos um gráfico que mostra a natureza desses valores, de 1970 até
1994. O principal credor não era o FMI, mas, sim, os bancos privados
internacionais. Então essa dívida da década de 1970 é a origem. Foi ela
que deu margem a toda sequência de renegociações. Em 1983, por exemplo,
essas dívidas foram transferidas para o Banco Central. Foi uma
ilegalidade, pois como um agente financeiro nacional, ele não poderia
ser, ao mesmo tempo, devedor. Isso foi uma exigência dos bancos
privados. Em 1994, a dívida se transformou em bônus. Ela deixou de ser
contratual e passou a se transformar em títulos, saindo do Banco Central
para ficar a cargo do Tesouro Nacional. Hoje, a natureza desses R$ 3
trilhões de dívida é em títulos, tanto a externa quanto a interna.
Restam pouquíssimos contratos de dívidas diretas e bilaterais com
países.
Para Maria Lucia, conceitos de dívida externa e interna precisam ser revistos | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Sul21 – A dívida interna inclui contratos internacionais?
Maria Lucia - Inlcui dívida com bancos internacionais.
Já não faz mais sentido falarmos, hoje, em dívida interna e externa.
Precisamos rever esses conceitos. Teoricamente, a dívida externa é
aquela contraída em moeda estrangeira junto a residentes no exterior. A
interna é aquela contraída em moeda nacional junto a residentes no país.
Hoje, o mercado financeiro está dominando tudo. Quando o Tesouro
Nacional emite títulos da dívida, quem tem o privilégio de comprá-los em
primeira mão são os chamados “dealers”. Uma lista obtida com o Tesouro
mostra quem são esses dealers: Citibank, J. P. Morgan, Santander,
Barclays, Deutsche Bank, HSBC… Esses bancos estrangeiros compram
diretamente os títulos da dívida interna. Então precisamos falar em
dívida pública ou dívida soberana, justamente por conta dessas
negociações e, também, por conta da ausência de barreiras ao capital.
Grande parte da dívida interna está na mão de estrangeiros. E a dívida
externa pode ser comprada por residentes no país, porque são meros
papeis.
Sul21 – Nesse contexto, qual seria a utilidade de uma auditoria na dívida?
Maria Lucia – A auditoria iria verificar não apenas os
números. Queremos entender qual é a contrapartida dessa dívida e em que
condições ela se originou. Não podemos fazer um discurso moralista sobre
o endividamento público, vendo a dívida sempre como algo perverso. A
dívida pode e deveria ser um instrumento importante para o financiamento
do Estado. Os recursos necessários para garantir uma vida digna a toda a
sociedade e que não conseguirem ser obtidos por meio dos tributos
poderiam ser captados por meio de endividamento. Mas um endividamento
transparente, discutido publicamente – porque afinal quem vai pagar é
povo – e a um custo razoável, com cláusulas contratuais coerentes. O que
temos encontrado nas nossas investigações são quantias que se tornam
dívida de um dia para o outro, cláusulas completamente absurdas, que
afrontam o aparato legal brasileiro, e operações injustificadas.
“Dizem que se você enfrenta o sistema financeiro, o mundo desaba. E
isso não aconteceu no Equador, o país não ficou isolado e continua tendo
acesso a crédito”
Sul21 – Como foi a experiência de participar do processo de auditoria da dívida pública do Equador?
Maria Lucia - O caso equatoriano foi uma lição de
soberania ao mundo. O presidente Rafael Correa criou, por decreto, uma
comissão para realizar a auditoria da divida interna e externa. Foram
nomeados integrantes dos órgãos públicos, juristas, professores,
representantes de movimentos sociais e um grupo de seis estrangeiros. Eu
tive a honra de ser convidada. Foi um processo que durou um ano e
quatro meses. Entregamos ao presidente diversos relatórios para fins de
organizar o trabalho. Uma equipe cuidou da dívida interna. Outra, da
externa multinacional. Outra equipe cuidou da dívida bilateral. E um
grupo – do qual eu fiz parte – ficou com os contratos com bancos.
Entregamos em outubro de 2008 todos os relatórios e o presidente ficou
particularmente interessado nos dados da dívida com os bancos, porque
era a parcela maior, onde os juros eram mais caros. Conseguimos
apresentar o relatório comprovando, com documentos, as diversas
ilegalidades, irregularidades e até fraudes nesse processo. O presidente
submeteu esse relatório ao crivo jurídico nacional e internacional e
recebeu o aval de que o documento tinha sustentação jurídica. Em março
de 2009, ele apresentou uma proposta soberana: arremataria a dívida por
30% do seu valor e estipulou um prazo para os detentores interessados
entregarem seus títulos. Quem não estivesse interessado que entrasse na
Justiça contra o Equador. Qual foi a grande surpresa? O mundo não caiu.
Dizem que se você enfrenta o sistema financeiro, o mundo desaba. E isso
não aconteceu no Equador. Cerca de 95% dos detentores acataram a
proposta. Os outros 5% nunca apareceram. Ninguém entrou na Justiça
contra o Equador. Isso demonstra que a auditoria é uma ferramenta que
permite acessar a verdadeira história do endividamento. Depois dessa
atitude, o Equador obteve um alívio orçamentário de US$ 7 bilhões, o que
representa muito para a sua economia. E o país não ficou isolado,
continua tendo acesso a créditos.
Maria
Lucia foi a única brasileira a integrar o grupo de especialistas que
realizou auditoria da dívida do Equador | Foto: Bernardo Jardim
Ribeiro/Sul21
Sul21 – E a dívida dos estados brasileiros com a União?
Parece ser uma engenharia financeira bastante semelhante à da dívida
nacional. No Rio Grande do Sul, por exemplo, o empréstimo feito pelo
governo federal foi de R$ 11 bilhões, em 1997. De 1999 a 2010, o estado
já pagou R$ 22 bilhões e ainda continua devendo R$ 38 bilhões.
Maria Lucia - Pesquisamos a gênese desse acordo e
constatamos que ele é muito parecido com os acordos que o FMI fazia com o
Brasil. Há, inclusive, um memorando em que o Brasil se comprometia,
junto ao FMI, a fazer o refinanciamento da dívida dos seus estados,
retirando deles a prerrogativa de se autofinanciarem. Essa negociação
estava associada a outros dois programas. Um deles era o PROES, que
“saneava” os bancos públicos estaduais para que pudessem ser
privatizados. Foi um verdadeiro pacote, igual aos pacotes que o FMI
preparava para a União. Esses acordos foram feitos em bases extremamente
onerosas e inaceitáveis, se consideramos que União e estados são entes
federados. Um cidadão de Porto Alegre vive, ao mesmo tempo, na sua
cidade, no seu estado e no seu país. E é ele quem paga essa dívida.
Então, veja bem, não tem sentido o cidadão pagar juros para ele mesmo. É
isso que acontece com essa dívida estadual: a União cobra juros dos
estados. Esses contatos fracionaram os juros nominais. Isso possibilitou
uma garantia de remuneração equivalente à atualização monetária, que é
medida, nessa dívida, pelo IGPDI, um índice que mede a expectativa de
inflação e considera questões cambiais – o que não faz sentido numa
negociação entre entes federados. Que federalismo é esse?
Sul21 – A quais conclusões é possível chegar após a análise de todos esses dados?
Maria Lucia - Podemos dizer que existe um sistema da
dívida. Ele consiste na usurpação do instrumento de endividamento
público. Em vez de ser um instrumento que aporta recursos ao Estado,
passou a ser um ralo para escoar esses recursos. É esse sistema que
influencia o modelo econômico. Quais são as metas econômicas do governo
federal? Não são metas de bem estar social. São metas de controlar a
inflação e atingir o superávit primário. É tudo dirigido em torno da
dívida, onde o sistema financeiro absorve a maior parte dos recursos. Se
não há recurso para pagar a dívida e atingir o superávit, então o
governo corta o orçamento de diversas áreas.
Informações
do Tesouro Nacional apontam que maioria dos detentores de títulos da
dívida brasileira são bancos internacionais | Foto: Bernardo Jardim
Ribeiro/Sul21
Sul21 – Como a senhora vê a articulação do poder político em
torno desse sistema da dívida? Não parece haver interesse dos grandes
partidos e lideranças na discussão desse problema.
Maria Lucia - Já conseguimos arrancar a CPI da Dívida
em 2010 na Câmara dos Deputados. É evidente que isso foi abafado pela
mídia, mas conseguimos acesso a muitos documentos. Atualmente, existe
uma CPI semelhante na Assembleia Legislativa de Minas Gerais. Mas essas
investigações sofrem forte pressão do setor financeiro, que tenta
abafá-las. Por isso precisamos criar uma pressão popular do outro lado.
Para que isso ocorra, a sociedade precisa ter acesso à informação.
Queremos criar uma mobilização consciente e derrubar a ideia de que esse
tema é muito complexo, de que só especialistas muito qualificados
poderiam entendê-lo. Precisamos de especialistas em órgãos públicos, mas
todas as informações são perfeitamente traduzíveis para o conjunto da
sociedade. São os cidadãos que estão pagando essas contas, eles precisam
entender a importância desse tema.
Fonte: http://www.sul21.com.br/jornal/ha-um-sistema-da-divida-publica-critica-maria-lucia-fattorelli/